sábado, 21 de março de 2020

A BOCA DO VENTO: Uma eterna fonte inspiradora * João Rodrigues Pinto - SP

A BOCA DO VENTO: Uma eterna fonte inspiradora


-tripadivisor-

“João Pinto, de onde nasce a inspiração para escrever seus livros?” - Volta e meia alguém faz essa pergunta, quando o assunto é literatura. Ora, a resposta não poderia ser mais óbvia. Toda a minha inspiração nasce das memórias de Gado Bravo, atual Licínio de Almeida, minha terra natal. Ali, eu vivi a infância e adolescência, correndo, pés no chão, atrás das pipas, brincando de bandas musicais, circo, filmes, pique-esconde ou subindo nos galhos das frondosas mangueiras do quintal lá de casa. Liberdade, alegria, poesia, teatro e faz de conta na rua mais antiga da cidade, que depois virou rua da lagoa, depois rua de baixo e, finalmente, sem qualquer conotação cultural, foi batizada de rua Coronel Gasparino David. Eu, que tenho apreço pela semântica e a metáfora, prefiro “boca do vento”, nome original, onde o vento frio de junho, fazia a curva da lagoa e soprava aos nossos ouvidos os seus mistérios e encantos. 
E foi assim. Nasci ali, onde a cidade começou e hoje, meu peito ainda arde de saudade daquele tempo realizador, barulhento, cantante... Saudade das prosas temperadas com a pimenta e o afeto de dona Emília, mãe de Gildásio, aquele que ainda menino, aprendeu a tocar o sino da Igrejinha com maestria. Aos domingos, o sino batia suas badaladas, convidando os fiéis para a missa, mas quando morria alguém, as badaladas eram diferentes, fúnebres, lentas, tristes, compassadas. Lá de casa, minha mãe debruçada no tanque de lavar roupa, pedia silêncio e dizia: “escute, alguém se foi...” 
Ainda hoje sinto saudades de dona Eulina, sorriso fácil, voz rouca e baixa, castigada pelos acessos de tosse, mãos finíssimas e pequenas. Uma senhorinha forte, baixa estatura, corpo frágil e meio curvado, vendedora de saborosas cocadas de leite e pães que o Lolói trazia da padaria de Manoel. No tempo frio, mal o sol da manhã mostrava a cara, dona Eulina atravessava a rua em passos lentos, sentava-se no banco do canteiro, em frente à velha casa, ajeitava o xale azul nas costas franzinas e soltava os cabelos compridos, cor de prata, depois passava o pente entre os fios. Eu corria, sentava-me ao seu lado para ouvir as suas histórias carregadas de emoção. Dona Eulina era a boa vovó da meninada da Boca do Vento. Todos que passavam e a avistavam na janela ou no banquinho em frente, estendia-lhe a mão, pedindo: “bença dona Eulina”, ao que ela, sorridente, respondia: “Sandeus”. Eu achava lindo aquela resposta, cujo significado é simples e profundo: “somos de Deus”.
Na boca do vento eu sempre encontro inspiração para as minhas escritas. Sempre que a visito, (re)absorvo novos detalhes, jeitos, trejeitos, gente, simplicidade e dedos de prosa entre os amigos de ontem e de hoje. A história nasce e renasce, pelo que foi ou poderia ter sido. Historias de gente que vai e que vem, sempre a partir do seu marco histórico: a belíssima Lagoa do Gado Bravo. 
No seu passado glorioso, a nossa rua era de intenso movimento: pessoas para cima e para baixo, resolvendo questões na prefeitura, no cartório de seu Adalberto, na farmácia de seu Mirá, nos feirantes, nas mulheres diante do chafariz, que saíam equilibrando latas d’água na cabeça, como artistas circenses, de sorriso no rosto e força na lida. Tinha o pescado de Zé Maria, Rostil, seu Jeremias, seu Fidelcino, Toninho mãe-racha e outros pescadores de traíra, em volta da lagoa e da represa da rua de baixo.
Quem não se lembra do barulho dos alunos da Escola Julieta ou dos gritos dos doentes mentais que eram trancafiados na fria cadeia, às margens da lagoa? Ainda me lembro dos gritos de Alice, chamando a minha mãe: “me tira daqui comadre Eunice” e dos olhos marejados de lágrimas de Magna, sua filha, que morava conosco, e que ouvia aquele clamor de cortar o coração. Mãe se emocionava, enxugava os olhos e passava a mão sobre a cabeça da afilhada. Um sinal de consolo para aliviar as primeiras feridas que nasciam no coraçãozinho da menina...
E a encantadora Igrejinha de Nossa Senhora da Conceição e suas lindas procissões e quermesses ao som de sanfona, pandeiro, reco-reco e muitos leilões? Dos balaios e cabos de vassouras que Zé Surdo fazia; as chaleiras casco preto, cabo de panelas e as canecas de lata de óleo, fabricadas por seu Antônio Galvão e o corante/urucum que a dona Jovem preparava? Enquanto isso, lá na beira da lagoa, o cheiro de café torrado da casa de dona Emília invadia a rua e os fregueses saiam de lá com a vasilha cheia.
Logo acima, o trecho mais temido pela meninada. Quem nunca sentiu um friozinho na espinha ao passar no escuro das “bananeiras mal assombradas”, ao lado do curral, na chegada do casarão de dona Nena e Antônio Botelho? Era a nossa lenda urbana que parecia verdade, tinha gente que preferia passar pela montanha, mesmo sendo o caminho mais longo e se fosse meia-noite, nem adulto tinha coragem. Hoje não existe curral, bananeira e até o belíssimo casarão foi demolido. A lenda urbana foi sendo esquecida, mas permanece vive nas minhas histórias sobrenaturais.
No início da manhã e no final da tarde, passavam na rua de baixo, caminhões, caçambas e brucks para as minas da pedra preta, ventador, jacaraci e outras. Levantavam tanta poeira que irritavam as nossas mães. E não era sem razão: as casas da boca do vento tinham o piso vermelho cimentado e sempre brilhando com a cera e tome escovão. Quem não tinha, passava o pano com bombril que o piso brilhava e ficava uma belezura. Mas os carros da mineração voltavam no final da tarde, atravessavam a boca do vento, cheios de manganês e descarregavam no pátio da mineração. A gente costumava catar as pedras que caiam das caçambas e no dia seguinte montávamos a nossa mineração. Pacheco, Osmar e Gildásio faziam os carrinhos e eu, Wagner, Roque e Jorge, éramos os motoristas. Era uma festa no quintal lá de casa ou mesmo na beira da lagoa.
Agora, se tinha uma coisa que a gente vibrava, era a chegava do caminhão Bela Vista do seu Zé Amaral. Para nós, aquele furgão imenso, amarelo, era um verdadeiro armazém ambulante repleto de doces que faziam a nossa alegria: pé de moleque, maria-mole, coração de abóbora, sorvete seco; suspiro, geleia, doce de banana, chiclete ploct e ping-pong, embaré e pirulito...E o seu Zé Amaral gostava daquela euforia infantil, nos presenteava com balas e doces, como um Papai Noel fora de época. 
E as saborosas cocadas de dona Maria Rita? A gente gostava da dona Maria, era alegre, toda prosa, mas morríamos de medo da mais velha, a dona Ezupéria: jeito de homem rude, fechado e nunca sorria. Ela tinha fios de barbas e bigode brancos, o que nos deixava intrigados. João Gama e Martinho diziam que ela tinha um facão debaixo do saiote e se qualquer moleque lhe faltasse com o respeito, era capado por ela e os “documentos” jogados para os cachorros. Era mais uma lenda urbana maravilhosa. Verdade ou mentira, o fato é que a gente morria de medo da quase centenária dona Ezupéria.  
Então é isso, a minha inspiração vem desse terra linda, encantadora e aconchegante, onde ainda é comum o bate-papo  na velha e sempre saudosa Licínio de Almeida. Ali existem pessoas que são especiais apenas pelo fato de existirem. Quando elas chegaram  ao mundo, deixaram impresso uma marca diferente, que aos poucos se destacava, no olhar, no sorriso (ou na ausência deste), nos gestos suaves, às vezes imperceptíveis e nas centenas de impressões que formam os olhares, ora carinhosos, sinceros, afetivos, ora piedosos, lamentosos, curiosos, preconceituosos, ora frios, distantes, decepcionados, ora espantados, aterrorizados, desumanos... Curiosamente, essas impressões - às vezes definitivas -, confirmavam o quão especiais elas eram e ainda são.  
Falo de gente que nasce, cresce e morre cercado de uma auréola de simplicidade, beleza, ternura e muita graça. Assim é o povo que fez da lagoa do gado bravo, o seu canto preferido, as suas mais inusitadas histórias. Hoje a rua de baixo está bem diferente, silenciosa, poucas crianças, as famílias já não se sentam nas portas, poucos fazem a fogueira de São João, a Igrejinha está fechada e o sino esquecido... A lagoa resiste, cada vez menor, tomada pela vegetação que esconde as suas águas. Ao seu redor, não existe mais o nosso campinho, a cadeia foi demolida, a velha prefeitura está fechada, o cinema fechou, a farmácia fechou, a feira acabou, o hotel fechou, a escola Julieta fechou, a represa diminuiu e até a casa de dona Eulina já não existe mais... morreram dona Emília, dona Fiinha, seu Duzinho, dona Laura, dona Etelvina, dona Mariinha, Zé Maria, Rostil, seu Jeremias, seu Fidelcino, dona Eulina, dona Maria Rita, seu Antonio Botelho, dona Nena, meu pai Geraldo, meu tio Zé, meu sobrinho Guilherme, minha irmã Tida e tantos outros que fizeram história nessa rua de tantos nomes, mas que permanecem vivos na boca do vento, rua da minha vida e que continua fazendo a curva ao redor da lagoa do gado bravo.
Vida que segue...



João Rodrigues Pinto - SP

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